Anencéfalos: lições de um julgamento
O julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a legalidade
do aborto dos fetos ou bebês com anencefalia terminou como era
previsível, dadas as tendências já manifestadas anteriormente por
juízes do STF: aprovaram por larga maioria que o abortamento de
anencéfalos, daqui por diante, será “legal” no Brasil. Assim se amplia
a lista dos casos “legais” de aborto: gravidez resultante de estupro,
risco de vida para a mãe e, agora, também a anencefalia.
Qual será o próximo caso?
Qual será o próximo caso?
Impressionaram-me diversas questões nesse julgamento do STF. Parecia
que estava em causa o julgamento da Igreja e de sua presença e ação
pública na sociedade brasileira. O emprego, a meu ver, abusivo do
conceito de “Estado laico”, até mesmo por juízes do STF, assustou-me.
A laicidade do Estado, então, desqualifica a priori qualquer argumento
que proceda de pessoas religiosas, ou representantes de organizações
religiosas? Isso já parece discriminação religiosa e ainda terá muitas
conseqüências; a laicidade do Estado precisa ser clareada melhor.
Continuo a me perguntar, por qual razão justificável, perante a
Constituição brasileira, o STF assumiu o papel de legislador,
atropelando o Congresso Nacional? No caso dos anencéfalos, de fato,
não esteve em jogo a interpretação de uma lei já existente; o STF
legislou, estabelecendo um novo caso de “legalidade” de aborto, antes
não previsto. Foi esta a via encontrada para que grupos de interesse e
pressão conseguissem mais facilmente seus intentos? Não seria também
esta uma via de subversão do Estado de Direito no Brasil, justamente
por conta de quem deveria ser guardião da ordem constitucional?
Impressionantes, os sofismas – afirmações falsas com aparência de
verdadeiras – que tiveram livre trânsito nos “palavrosos” argumentos
apresentados. Eis alguns: o anencéfalo é um “natimorto”; o anencéfalo
é uma não-vida, algo indefinível; o feto ainda não é vida humana; o
anencéfalo é uma “vida inviável”... Também tenho a impressão que
venceu, não o direito objetivo, mas algo que poderíamos chamar de
“direito emotivo”. É muito questionável o princípio, agora
estabelecido, de que pode ser suprimido e eliminado o ser humano que
causar desconforto, dor, profundo sofrimento ao próximo, mesmo de
forma involuntária. Qual é a culpa do pobre anencéfalo pela dor
causada à mãe? Dor compreensível, que merece todos os cuidados e
atenções, menos a eliminação daquele que causa essa dor... Quais
serão, agora, as próximas vítimas da aplicação desse princípio?
Ninguém acredite que isso valeu “só para o caso dos anecéfalos”; a
jurisprudência vai aplicar as conseqüências dos princípios
estabelecidos. Onde vamos parar?
Esse julgamento do STF nos deixa várias lições. Antes de tudo,
continua válido o velho princípio do bom senso: nem tudo o que é
“legal”, também é moral. No caso, para a moral cristã, continua
valendo a Lei Maior, que é a de Deus, e que ensina: “não matarás”. O
aborto de anencéfalos não será um ato moralmente bom, só porque é
“legal”. Também fica muito claro que nenhuma mulher está obrigada a
fazer esse, ou qualquer outro tipo de aborto. Mas é pena para o
Brasil: povo acolhedor e amoroso, ele tem agora uma lei que consagra a
insensibilidade diante dos indefesos e imperfeitos e afirma o direito
dos mais fortes sobre os mais fracos... Não é da nossa cultura! Pena mesmo!
Publicado em O SÃO PAULO, ed. de 17.04.2012
Cardeal D.Odilo P. Scherer
Arcebispo de São Paulo